Vini Jr: como os ataques de jogadores expuseram o racismo na Espanha, da discriminação no aluguel e nas redes sociais ao futebol - BBC News Brasil (2023)

"Tenho pena dos espanhóis que discordam, mas hoje no Brasil a Espanha é conhecida como um país de racistas."

Essas são as palavras do brasileiro Vinícius Júnior, do Real Madrid, após a partida de domingo (21/5) contra o Valencia, onde o jogador de 22 anos tentou chamar a atenção do árbitro para os insultos racistas que recebeu de torcedores locais.

Vinícius posteriormente postou fotos em suas redes sociais de outros ataques racistas que recebeu em diferentes estádios espanhóis nos últimos dois anos.

A primeira reação do presidente da liga espanhola de futebol, Javier Tebas, foi crítica ao jogador em uma postagem no Twitter: "Como quem não deve explicar o que a @LaLiga pode fazer em casos de racismo, tentamos explicar você, mas você não apareceu em nenhuma das duas datas combinadas que você pediu. Antes de criticar e insultar a @LaLiga, você precisa estar bem informado."

Mas depois disse que não pretendia atacar Vinícius e pediu desculpas se sua intenção não foi compreendida, "principalmente no Brasil".

O debate foi além do futebol e chegou à reunião do G7 em Hiroshima, no Japão, onde o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que "fascismo e racismo" não podem dominar os estádios de futebol.

Com base nessa polêmica, muitas pessoas denunciaram sua experiência como migrantes ou não brancos na Espanha nas redes sociais ou na imprensa, uma série de pequenas e grandes discriminações e ataques, muitas vezes diários.

Os insultos do torcedor de futebol refletem o clima predominante no país? É possível determinar se um país é racista? Essas perguntas não têm uma resposta simples, principalmente se não houver dados precisos sobre esse fenômeno social.

Ao contrário de países como o Reino Unido, onde o Estado coleta dados detalhados sobre a origem étnica ou racial de seus residentes por razões estatísticas e para promover a diversidade, este não é o caso da Espanha.

Há muito poucos dados confiáveis ​​sobre a diversidade racial do país, mas poucas pesquisas recentes para capturar globalmente as atitudes ou mentalidades de seu povo.

Regista denúncias de crimes de ódio, incluindo os relacionados com o racismo e a xenofobia. Em 2021, por exemplo, o Ministério do Interior contabilizou 638 atos racistas, 24% a mais do que em 2019, antes da pandemia.

No entanto, apenas 12,8% das pessoas que vivenciaram uma situação discriminatória com base em raça ou etnia apresentaram queixa, denúncia ou reclamação, segundo o estudo “Perceptions of Racial or Ethnic Discrimination by Potential Victims in 2020” do Council for discriminação étnica (Cedra), no Ministério da Igualdade.

As vítimas não se manifestam porque acreditam que o caso ficará impune, porque desconhecem seus direitos ou porque temem que isso lhes cause problemas. Um em cada quatro, segundo o estudo, também não o faz porque diminui ou até justifica esta situação de discriminação.

"Dizem que o racismo na Espanha não é mais normalizado como era porque há pessoas, governos, instituições conscientes que o condenam. Mas até nós que sofremos com isso normalizamos. Da próxima vez dói", escreveu ele esta semana, em um Em coluna de opinião do Jornal Público, a escritora peruana Gabriela Wiener, que mora na Espanha há anos, descreveu a agressão racial que sofreu recentemente em uma reunião social.

Sukaina Fares, que trabalha em uma imobiliária, disse à BBC News Mundo que, por exemplo, um em cada três apartamentos alugados tem um "filtro racista".

Muitos proprietários de terras não querem imigrantes ou não-brancos. Recentemente, um senhorio adiou o dia da assinatura do contrato porque, embora já tivesse combinado previamente com a potencial inquilina, médica e mãe solteira, "na hora de assinar, viu que ela era negra e não queria para."

"E não é só no aluguel.

O racismo sofrido por Vinícius, Wiener ou o que Fares está dizendo não é novidade.

O futebolista camaronês Pierre Weibó, que jogou por Osasuna, Mallorca e Leganés, relembrou esta semana em entrevista ao jornal desportivo Relevo como foi difícil, por exemplo, uma pergunta que o seu filho lhe fez no início dos anos 2000: "Pai, porque é que as pessoas fazem eles fazem esses sons quando você toca na bola?"

O problema vai além do futebol, explica David Moscoso Sánchez, professor de sociologia da Universidade de Córdoba, para a BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

"Em geral, na Espanha há uma difusão e normalização de certos valores racistas que pareciam ter desaparecido e estão encontrando um lugar de consolo no espaço do futebol", disse por telefone.

Os estádios de futebol, na sua opinião, "parecem protegidos da aplicação de regras, não só de decoro social, convenções sociais e convivência, mas também de regras legais. Num estádio de futebol, as pessoas podem fazer o que quiserem: insultar o árbitro, o jogadores... e nunca acontece absolutamente nada. É um espaço para a livre expressão desses valores".

O problema, acrescenta Moscoso, não vem do esporte, mas “do enfoque ideológico que tem alimentado a extrema direita nos últimos anos, que se traduz em um ódio insuportável aos estrangeiros, imigrantes ou de outra cor de pele”.

Quando líderes políticos de determinados grupos veiculam valores racistas, adverte a pesquisadora, “abrem as portas para um certo reconhecimento ou aceitação social desses discursos”.

No momento, "estamos vivendo um retrocesso", como admitiu Antumi Toasijé, presidente da Cedra, à BBC News Brasil.

“O racismo tem uma longa tradição na Espanha”, diz Toasijé, e “à medida que a extrema direita ganha terreno, todos os elementos estão sendo criados para o crescimento exponencial do racismo em nossa sociedade e a qualquer momento pode haver uma explosão”.

Mídias sociais e juventude

Como em muitos outros países, esse terreno fértil se multiplicou com o advento das redes sociais.

A Espanha não é um país racista, explica a jornalista e consultora de comunicação Carmela Ríos à BBC News Mundo, "mas é um país onde começamos a ver muitos discursos de ódio espalhados nas redes sociais há pelo menos cinco anos, e com impunidade crescente ".

Embora grandes empresas de tecnologia como Meta ou Google digam que estão tentando moderar esse conteúdo de ódio e desinformação – “menos Twitter, onde não há moderação e o ódio flui como espuma”, diz Ríos – não é o suficiente.

“Nem todos os espanhóis são racistas, mas existe uma agência social e tecnológica bastante poderosa e pouco monitorada para fazer isso acontecer”, acrescenta.

Ríos, que há anos analisa as redes sociais, aponta a idade dos presos no caso dos xingamentos racistas de Vinícius: "são todos muito jovens, é impressionante. E essa é uma das demonstrações de como o discurso de ódio dentro de certas grupos é uma tendência socialmente aceitável, que também se reflete nos canais de comunicação de algumas comunidades, como os grupos de ultras de futebol".

Mais especificamente, um estudo de novembro de 2022 sobre percepções e racismo dos jovens realizado pelo Centro de Adolescência e Juventude Reina Sofía (que entrevistou 1.200 jovens entre 15 e 29 anos) concluiu que, embora a maioria das pessoas tenha opiniões muito distantes dos estereótipos e preconceitos racistas, um em cada quatro jovens entrevistados concordou com as declarações racistas.

A imprensa também contribui para essa percepção.

Uma das áreas mais estudadas é o anticiganismo, profundamente enraizado na Espanha.

Segundo sucessivos estudos realizados pelo Instituto de Estudos Sociais e Culturais de Roma, os meios de comunicação contribuíram consciente e inconscientemente para a sua publicação, mantendo estereótipos ou insistindo numa linguagem específica ("clã", "patriarca", "briga"...) descrever a comunidade cigana.

Embora não existam muitas estatísticas sobre o racismo, as percepções sobre a imigração têm sido mais estudadas e, embora forneçam apenas uma visão parcial da discriminação racial na Espanha, servem como um guia de tendências.

Segundo a pesquisa "Explicando atitudes pacíficas em relação aos imigrantes na Espanha", elaborada pelo Instituto de Estudos Sociais Avançados do CSIC no outono de 2020, um quinto dos espanhóis sentia antipatia pelos imigrantes em geral.

Essa proporção subiu para um em cada três para os norte-africanos, enquanto os latino-americanos tiveram um nível de simpatia muito maior. O estudo entrevistou 2344 pessoas de nacionalidade espanhola.

A Espanha, explica Sebastian Rinken, pesquisador principal do estudo CSIC à BBC News Mundo, experimentou um boom migratório muito importante nos últimos anos e, apesar disso, "a digestão coletiva dessa mudança demográfica foi muito tranquila. Bairros e crianças compartilhar centros educacionais sem problemas, por exemplo".

“Na sociedade espanhola, se olharmos para a mudança que aconteceu desde os anos 1990 até hoje, especialmente durante o grande boom, não havia conflito social em torno da questão da diversidade, praticamente nenhum”, diz Rinken.

Essa também é a experiência de Zoubida Boughab, que trabalha com grupos de mulheres e chegou à Espanha há mais de 30 anos. "Existem racistas, claro, é algo universal, mas não vivo racismo no dia a dia. Costumo pensar que é classicismo, ignorância ou medo do outro", explicou à BBC.

O que a lei diz

A legislação espanhola reconhece o direito à igualdade perante a lei e à não discriminação, protegido pela Constituição de 1978 e por diversas normas especiais nacionais e regionais sobre esportes, educação, trabalho ou liberdade religiosa, bem como disposições especiais do Código Penal para crimes de ódio.

No entanto, em 2022 foi aprovada uma lei especial para combater este tipo de discriminação, a “Lei 15/2022, de 12 de julho, que dispõe sobre a igualdade de tratamento e a não discriminação”, também conhecida em Espanha como “Lei Zerolo”, em homenagem ao representante e ativista de direitos da LGTBQIA+ Pedro Zerolo, que tem sido a principal figura por trás de sua promoção desde sua introdução em 2008.

A lei, que prevê multas que variam de 300 (R$ 1.620) a 500 mil euros (R$ 2,7 milhões), estabelece que ninguém pode ser discriminado por motivo de nascimento, origem racial ou étnica, sexo ou religião, crença ou opinião idade , deficiência, orientação ou identidade sexual, expressão de gênero, doença, condição médica, situação socioeconômica ou qualquer outra condição ou circunstância pessoal ou social.

O Conselho para a Eliminação da Discriminação Racial (Cedre) oferece um número de telefone gratuito para atender as pessoas que sofreram racismo ou têm conhecimento de uma situação de discriminação racial.

As consultas também podem ser feitas via WhatsApp, e-mail ou pessoalmente em um dos 23 escritórios em diferentes partes da Espanha.

O serviço presta assessoria jurídica gratuita, informação às vítimas sobre os recursos públicos existentes ou, por exemplo, resolução de conflitos, se as partes assim o desejarem, com mediação.

No entanto, o Ministério da Igualdade acredita que a legislação atual não é suficiente, por isso quer aprovar a Lei contra o racismo o mais rápido possível, explica Folder à BBC.

Esta proposta, que é apenas um anteprojeto, mas que ainda não virou projeto de lei nem chegou ao Conselho de Ministros, visa, entre outras coisas, reprimir o discurso de ódio na mídia e nas redes sociais.

Pretende ainda estabelecer protocolos contra o assédio racista em centros educativos e que as empresas com mais de 250 trabalhadores desenvolvam planos anti-racismo.

No campo do esporte, existe uma lei especial de 2007 contra a violência, o racismo, a xenofobia e a intolerância. Há também um órgão estatal: “Comissão Estadual contra a Violência, o Racismo, a Xenofobia e a Intolerância no Esporte”.

No entanto, como explica David Moscoso, “uma coisa é o aparelho legislativo existir e outra ser efetivamente implementado”.

No caso de Vinícius Júnior, por exemplo, “foram 10 reclamações em dois anos, mas não deu em nada, como em outras situações semelhantes. E a tendência em alguns casos é culpar o jogador, dizendo que ele causa muito. a mulher foi estuprada e culpabilizada. Aqui há um problema mais grave”, acrescenta a socióloga da Universidade de Córdoba.